RENNÓ, Raquel. Entre monstros e quimeras: arte, biologia e
tecnologia / Raquel Rennó, Pau Alsina Gonzalez. – Juiz de Fora: Ed. UFJF,
2015.
1. Sobre a natureza e a vida como poderia ser
Hoje, através da desapropriação da função pragmática
das ciências da vida e sua recontextualização na forma estética, caminhamos nas
fronteiras entre natureza e arte.
A história dos transgênicos remete à 1987 em plantas e em 1996 industrialmente
na agricultura. Em menos de 15 anos 82% do mercado mundial de sementes estaria controlado
por empresas privadas.
Existem outros
tipos, sejam alicamentos e as plantas bioindustriais e micróbios geneticamente
modificados que servem para descontaminar ambientes degradados.
As visões dualistas
entre homem e natureza podem gerar tanto a “tecnofilia” – hegemônica e utilizada para justificar um
discurso otimista que favorece o mercado. E a “tecnofobia”, medo mitológico das forças destrutivas das
criações humanas e punições e que acusa às tecnologias pelo aumento do fosso
entre ricos e pobres, entre países centrais e periféricos. Mas são dois lados de uma mesma visão hierárquica.
Foi exatamente a
capacidade de criar e produzir artefatos vivos que colocou a ciência em seu
lugar hegemônico atual, como prática e discurso. O corpo como artefato adquire
estatuto natural. Aí o papel da arte como espaço de contraste com o ambiente
científico (o laboratório, o discurso das ciências) adquire
relevância.
A conexão
entre corpo, mente e simulação gera a “inveja
do ciborgue”, o desejo de transcender a condição humana, superando o físico e o
biológico em uma “alucinação consensual” simbólica e metafórica do ciberespaço.
Pigmalião e
Galatea – escultor e obra que ganha vida.
Golem – a criatividade
do homem, direito horizontal e a antítese vertical, o Absoluto. Aproximando-se
a deus, a pessoa pode ter algum poder, como a criação da vida.
Relação dual entre
criador e criatura, entre obediência às regras de deus e o caminho livremente
escolhido pelo homem.
2. Arqueologia da biologia e a biotecnologia
Antes do aparecimento
do termo biologia havia história natural, a filosofia natural e a teologia
natural. Com o avanço da ciência dos seres vivos e sua partição em diferentes
disciplinas, constata-se que a ciência moderna foi engendrada pela forte ambição de
conquistar a natureza e subordiná-las às necessidades humanas. As visões do controle, administração,
flexibilidade e obediência tendo por finalidade a eficiência.
Desenvolvida
linearmente desde a domesticação de animais como antílopes e ovelhas em 1800
a.C., a teoria da origem das espécies
de Darwin em 1859, as leis da genética de Gregor Mendel em 1865, o desenho da
estrutura do DNA em 1954, até o onco-rato em 1988, ou o lançamento do Projeto Genoma em 1990 para finalmente chegar à
clonagem da ovelha Dolly em 1997.
Falar sobre a
vida é falar sobre distintas narrativas através das quais se foi definindo a
vida. Três momentos pragmáticos para a história da vida como descrita pelos
cientistas: a história natural
do século XVIII na qual a vida está ausente; o período do evolucionismo, que historiciza a vida; a
engenharia genética do final do
século XX, que promove uma descontextualização da vida.
No século XVIII
havia uma história natural que era somente a denominação do visível, fixando
uma natureza que não se deixa controlar em herbários, jardins botânicos,
classificações e taxonomias. A vida pensada numa estrutura temporal abstrata e
a-histórica, uma vida sem contexto que não pode ser pensada no fazer e desfazer
do processo da própria vida. Negando o dinamismo do ser vivo, ao invés disso, a vida
como ser inerte. Até que virá a
mudança quando da constatação da impossibilidade de classificação do ser vivo
em si, em que a vida aparecerá como aquele resíduo que escapa ao
esquema da taxionomia que pretende abarcar tudo.
A biologia se transforma enquanto pensamento de uma vida
que se deve historicizar. Iniciando uma
história que possibilita uma constante indagação quanto ao futuro e sua
evolução. O evolucionismo prioriza a transformação inscrita ainda sobre a
conservação de uma essência imóvel nela mesma. O progresso age como uma roupagem discursiva do
evolucionismo. O conceito de adaptação, mediante o qual se descreve o modo com que o
organismo e o ecossistema estão relacionados. Darwin introduziu uma ruptura
fundamental ao separar o interno do externo, os organismos dos ambientes em que
estes habitam. Entre o Jardim Botânico e o banco de dados há um paralelo por
serem ambos caracterizados pelo fato de não levarem em conta nem o contexto nem
a dimensão temporal dos seres vivos. Na terceira etapa a biologização se torna
genetização e o gene se torna o fundamento e princípio orientador da
vida. Ordem, classificação,
exterioridade e origem permanecem nessa “nova” narrativa da vida. Redução
da vida à sua mínima expressão, baseada na informação genética. O todo, a vida se reduz à parte, ao gene, que age
como motor do processo da vida e o DNA se converterá no próprio livro da vida,
como materialização do Santo Graal. Um discurso que prioriza dados frente ao
contexto e ao processo de conformação do que é apresentado como dado. A redução
da vida à informação manipulável. Manipulação, processamento e
modificação. DNA recombinante, em
que é possível isolar os fragmentos do DNA, alterando livremente sua composição
interna para introduzir nova informação genética desenhada. A vida
como é entendida neste discurso é reduzida a uma sequência lógica disponível em
uma rede de bancos de dados, ciência da vida e ciência da informação. Uma cartografia inédita da vida que conecta
espaços e tempos distintos.
3. Práticas artísticas, biologia e tecnologia
a. Notas sobre o contexto histórico das relações entre arte
e ciência
A pré-história da
ciência é a mesma que a da arte. As elaborações artísticas e científicas tinham
um objeto comum, na base de tudo estavam as diferentes tentativas de resolver
as questões da vida. A necessidade não é mãe da invenção – apenas do
aperfeiçoamento. A inovação requer uma curiosidade motivada
esteticamente. Da Vinci compreendia
a pintura como parte crítica de um processo científico, no qual a observação
cuidadosa aproximaria a pessoa dos fenômenos e possibilitaria o desenvolvimento
de teorias. Entre os alquimistas a esperança era encontrar a fórmula que albergava
grandes poderes curativos. Newton não era o pioneiro da idade da razão, mas sim
o último dos magos. Além de Newton, Boyle, Pascal, Boerhaave, entre outros
“cientistas modernos” tinham a alquimia em uma agenda secreta. Há uma
dificuldade em comprovar as várias “razões científicas” que conviviam nesta
época, de modo a garantir a linearidade e univocidade no discurso da história
das revoluções científicas. A crítica das ideias alquímicas que passa por uma
crítica ao universalismo, contém em si o ideal de conhecimento único. Essa tendência universalista ainda está presente nos
discursos midiáticos sobre a ciência.
A maioria dos cientistas sabe que genes sozinhos não controlam a vida, em
grande parte é graças à imprensa que o DNA se fez presente em nossa
cultura. Na biologia
tradicional problemas genéticos nos tornam vítimas da herança, mas algumas
linhas incorporam a ação da mente à compreensão da vida. Maturana postula que os
sistemas vivos são sistemas cognitivos e o processo de vida é um processo de
cognição. Assumir a humanização
do objeto em algum nível é parte do processo científico e pode, inclusive,
ajudar a compreensão do objeto estudado. A subjetividade deve ser
considerada como parte do método científico e não somente do artístico.
A invenção do microscópio
teve um papel importante na maneira de conceber o mundo. Em 1608 todo o
universo paralelo, astros e micróbios, já podiam ser estudados. Em 1665 Robert
Hooke se deu conta de que o material era composto de pequenos compartimentos a
que chamou células. Em 1839 cientistas alemães conceberam que todo ser vivo se
constitui da mesma unidade básica da vida. Em 1860 Rudolf Virchow declarou que
todos os organismos vivos se derivam de uma só célula. A
teoria celular abriu para o mundo uma concepção de que todas as formas de vida
estão estreitamente relacionadas em sua estrutura.
Aos olhos dos artistas isso significava que o conceito de metamorfose de Ovídio
agora tinha justificativa científica. A transformação se tornou um tema-chave
do estilo art nouveau.
Assim como a teoria de
Darwin de evolução de formas anteriores por seleção natural também aproximou as
formas humanas às dos outros seres vivos. A pesquisa sobre transtornos mentais,
sonhos e hipnotismo levou à tomada de consciência – no ocidente – das
influências das formas e cores do ambiente no bem estar mental, ao mesmo tempo
que se tentou refletir a mente e as emoções humanas em formas e cores. Na
virada do XIX para o XX, a psicanálise, teoria da relatividade, Arte Moderna,
fotografia, cinema, meios de transporte, medicina são alguns exemplos que levam
a comparar o período com o Renascimento. O trabalho estético está atento aos
novos elementos e características que emergem, aqui e aí, e que apontam em
direção do descobrimento de novas possibilidades. Deste modo a arte
não é uma mera atividade, mas se converte em uma espécie de ciência
experimental. Grupos de artistas e
filósofos interpretavam de formas diferentes os descobrimentos e
desenvolvimentos da ciência e da tecnologia na sociedade (vanguardas).
As
artes têm um papel fundamental em criticar, propor uma mudança de consciência,
ou, pelo menos, expor incongruências,
principalmente fazendo um contraponto às ideias que, por estarem mais presentes
no senso comum, começam a se tornar verdades absolutas. Analisar a estruturação
discursiva dos discursos científicos pode ajudar a superar estas concepções.
b. Do atelier ao laboratório: a contribuição da arte às
ciências
A forma como o homem percebe a natureza é, em si
mesma, um fator de mudança do meio ambiente.
A tendência do homem em controlar o que conhece provoca uma alteração na
natureza – de modo sofisticado, modificando e misturando células e genes. Da
qual deriva a descontextualização: ao selecionar da natureza unicamente o que
queremos e a forma como queremos, eliminamos as conexões que existem entre as
espécies e seu habitat, gerando novas
conexões que, por si mesmas, já são objeto de novas pesquisas, que levam, em um
movimento circular, a novas classificações.
Operações de remodelação,
pelas demandas de mercado. A descontextualização como instrumento discursivo,
permite uma abstração tal que as consequências para o meio ambiente são
secundadas ou mesmo ignoradas. Esse fator científico-cultural modela o entorno
e ignora o conceito de totalidade. A própria separação entre natureza e cultura é
uma abstração que teve consequências concretas no modo como tratamos e
alteramos a natureza. Estabelecendo
uma hierarquia como consequência direta. Na visão antropocêntrica, tudo o que
está fora do ser humano se torna secundário.
Uma intervenção
artística no campo da biologia nunca pode ter uma função puramente estética,
uma vez que está envolvida e impacta em sistemas cujas consequências, muitas
vezes, não se conseguem entender totalmente. A arte nos permite compreender
aspectos que não estão imediatamente visíveis.
Uma obra de arte deveria nos ensinar sempre o que não havíamos visto no que
vemos. A educação profunda consiste em desfazer a educação primitiva, o que de
certa forma, equivale a dizer que a educação dos sentidos e da
percepção gerada pela arte possibilita uma compreensão mais complexa e profunda
das coisas e do mundo. Uma busca (pelo menos em tese) também científica. Guatarri propõe a ecosofia que integra três
registros ecológicos: meio ambiente, relações sociais e subjetividade humana. A
potencialidade da ecologia em substituir o fiscalismo e antropocentrismo pelo
biocentrismo. A base da ciência está nas regras que constituem seus paradigmas,
que são gradualmente substituídos por outros. Assim a ciência evolui de forma
fragmentária. Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro
é rejeitar a própria ciência. Enquanto o artista deve ter um profundo
conhecimento histórico dos movimentos artísticos.
O pensamento sobre
números estaria relacionado com sistemas, leis do mundo, tomados de algo
limitado, rígido, sedimentado e vinculado com a ideia de morte. Que se aplicam
na definição de indivíduos (eu versus
outro).
O próprio espaço e
tempo se dividem, se medem e, assim, aparentemente, se tornam submissos às leis
compreensíveis do homem. A complexidade não reside no estudo das certezas e
constâncias, mas nas variedades e na lógica de distinções orgânicas do
conhecimento sobre o tempo e espaço.
Os processos culturais entendidos desde sua incompletude, sua dinâmica de
fluxos contínuos, suas tensões sem resolver, são o que, precisamente, empurra
os limites e permite o intercâmbio entre distintos sistemas de conhecimento.
As tecnologias ampliam
as capacidades de cognição e percepção do mundo. Para Guattari, a questão da
enunciação subjetiva se tornará mais evidente na medida em que se desenvolvem
as máquinas produtoras de signos, de imagens, de sintaxe, de inteligência
artificial. A para Simondon, a tecnologia é um gesto humano congelado, possuidor
de uma história e nunca neutra. Que história e
que visão de mundo e de vida nos contam as pesquisas atuais em biotecnologia?
Chama-se a atenção para o uso simplesmente responsivo da tecnologia e métodos
científicos por parte das artes, pode fazer com que trabalhos artísticos sejam
utilizados como meras ferramentas de promoção da própria indústria de
biotecnologia.
O prefixo bio em termos como bioterrorismo,
biocombustíveis, bioarmamentos, incorpora o conceito de vida a elementos
basicamente tecnopolíticos. O confronto da biotecnologia a partir da arte, a
discussão sobre o próprio status do
conceito de vida, provocando debates e controvérsias, sugerindo e gerando
ideias sobre o que são, o que poderiam ser (ou o que talvez não devessem ser)
os seres vivos.
Zoossemiótica – uma
teoria que se encontra entre a semiótica e a etologia. O
comportamento dos animais constitui uma atividade informativa, o que permitiu contribuições tanto para as
ciências humanas, quanto para as biológicas e de computação. Louis Bec criou
formas alternativas de vida em um projeto de animais artificiais chamados
sulfanogrados, contribuindo para as teorias atuais do início da vida no
planeta, uma proposta artística que abriu caminhos para as hipóteses
científicas. Em I like America and
America likes me, Joseph Beuys convive com um coiote, como um modo de
pensar as relações comunicativas de forma ampla, que envolvem linguagem e
paralinguagem. O equívoco de pensar que a
linguagem humana é algo único impede que se compreendam novas formas de
comunicação, bastante mais elaboradas do que pensamos e que convivem ao nosso
redor. O conceito de Umwelt determina que a percepção está
relacionada com a compreensão de uma estrutura, cada espécie compreende o mundo
a partir do que pode perceber dele. O que pode permitir uma expansão da própria
visão da arte, tradicionalmente antropocêntrica. Podendo sair das dicotomias
excludentes entre “identidade” e “alteridade”, questões que tocam diretamente
temas vinculados à biotecnologia e ao medo do bioterrorismo.
Através da arte é possível falar sobre a manipulação
midiática como ferramenta política que tenta controlar mediante o medo ao
bioterrorismo, os vírus que
exterminariam toda a população. Susan Sontag trata da relação entre doenças e
as metáforas militares, gerando estratégias agressivas de “defesa”. O
imaginário da contaminação e a invasão por parte do “outro”, estranho a nós. De
modo que a liberdade individual possa ser trocada por uma (falsa) promessa de
tranquilidade. Mas o estrangeiro está em nós mesmos, a instabilidade que ele provoca é inerente a
todos.
4. Do macro ao nano: principais linhas de trabalho em arte,
biologia e natureza
a. Astronomia e exobiologia
Tudo o que não pertence
ao nosso planeta, imagens espaciais, servindo como inspiração, métodos
e sistemas de análise da astronomia,
o uso metafórico ou contemplativo, tratando da comunicação entre espécies
terrestres e extraterrestres ou mesmo da criação de organismos exobiológicos
(relativos à vida fora da terra). A partir da Inteligência Artificial, simular
diferentes respostas em organismos artificiais no mundo físico, entender
o comportamento de elementos terrestres em um ambiente espacial. Para Sterlac o corpo deve superar sua condição
biológica inicial com definitiva e ser compreendido como um organismo em
constante transformação.
Associação
Internacional dos Artistas Astronômicos – IAAA
Andy Gracie –
Drosophila Titanus (2011)
Sterlac – the body is obsolete (2002)
b. Natureza e paisagem
A pintura paisagística
em sua origem, Flandres do século XV, representava uma maneira de ver que se
relacionam com o surgimento do capitalismo. “uma paisagem não é tanto uma
janela como moldura aberta ao mundo, mas sim algo valioso pendurado na parede
onde o visível foi depositado”.
Posteriormente o Romantismo e a idealização de mundo com um fundo escapista,
Realismo e uma reflexão sobre as circunstâncias da vida, escolas paisagísticas,
a viagem de Humbolt pela América, Johann Moritz Rugendas, Ferdinand Bellermann,
Albert Berg. Arte e paisagem, arte e natureza, Land Art. Walter Maria, Mario Merz, Jseph Beuys, Robert Smithson
preparam terreno para as ecoinstalações do início dos anos 80, de artistas como
Britt Smelvaer (Dinamarca), Nils-Udo (Alemanha), Kimio Tsuchiya (Japão), Andy
Goldsworthy (Reino Unido), Bob Verschueren (Bélgica), Ilona Lovas (Hungria),
Miroslaw Maszlanko e Edward Lazikowiski (Polônia).
Novas paisagens que buscam tornar vivíveis aspectos de
nossa existência. Artistas se
apropriaram de tecnologias da geologia e geografia, como global positioning system (GPS) e as disciplinas da geomática.
Masaki Fujihata – Fieldwork (2005)
Brett Stalbaum – Gun Geo Marker (2013)
Joan Fontcuberta – Securitas (2001)
Hiroshi Ishii e Tangible Media Group do MIT – Sandscape (2003)
Ken Goldberg, Randall Packer, Grez Kuhn e Wojciech Matusik – Mori (1999)
Calum Stirling – Landsylus Survey #2 (2001-2002)
Heitor Villa-Lobos – Skyline Melody (1939)
Seiko Mikami e Sota Ichikawa – Gravicells – Gravity and Resistance
(2004)
Ken Goldberg e Kart Bohringer – Invisible Cantilever (1996)
Vitoria Vesna e James
Gimzesky – Nanomandala (2004-2005)
Anna Barros – 200
milhões de anos – Duree (2010)
c. Natureza e espaço urbano
O espaço urbano
concentra os paradoxos do desejo de controle e esperança de recuperação da
natureza. A natureza era artificialmente construída na cidade, recortada por
janelas e portas. A cidade se transformou num espaço de sobreposição do novo e
do antigo, do público e do privado. A incerteza, o estranho se
transformam em elementos liberadores e de mudança. O cotidiano do homem possui uma forma e essa forma
é sempre ritualizada, pelo menos esteticamente. Nessa ritualização a imagem
artística pode apoiar-se, na memória e no consciente, no ritual do cotidiano.
Artistas questionam a estruturação autoritária das cidades. Onde a
cidade perde seu status de ambiente
controlado, onde a multidão cria espaços efêmeros de convivência e onde a
natureza volta a interagir com as construções
é o espaço preferido dos artistas que trabalham com o urbano. Terrenos baldios,
microuniversos, onde é possível perceber a totalidade e a impossibilidade de
uma unidade sistêmica. Trazer elementos da natureza para o espaço urbano,
recuperar o contato com a natureza e as tradições que estão se perdendo.
Ocupação das áreas na cidade pelos jardins e hortas é oficialmente ilegal,
trata-se de recuperação do espaço público combinada com uma crítica à extrema
privatização dos espaços urbanos. A ideia do artista como agente
ativo na natureza, propondo alternativas concretas. Questionando uma oposição
comum entre fascinação por computadores e uma visão ecológica. Uma nova paisagem povoada por essas criaturas
artificiais.
Gilberto Esparza –
Plantas Nómadas (2008-2013)
Arcangel Constantini –
Nanodrizas (2009)
Francesco Mariotti –
The Fireflies Factory (2010)
Christina Stadlbauer –
Melliferopolis
Free Soil – F.R.U.I.T.
(2005)
Ieva Auzina, Esther
Polak e RIXC – MILK (2004)
Erich Berger e Martin Howse – Curie’s children (glow boys, radon
daughters) (2014)
Critical Art Ensemble –
O Culto da Nova Eva (1999) / projeto BioCom (1997) / Flesh Frontiers (1997)
Metarreciclagem – http://www.metarreciclagem.org/
The Preemptive Media Group – Air (2006)
Ricardo Dominguez –
Transborder Inmigrant Tool (2008)
Guto Nóbrega –
Breathing (20019) / Telebiosfera (iniciado em 2011)
Leslie García – Pulsu(m)
Plantae (iniciado em 2012)
d. Transgênese, clonagem, engenharia de tecidos
O conceito de Vida
Artificial começou no final dos anos 80. Com a integração de sistemas
tecnológicos e biológicos, as fronteiras entre vivo e não vivo, humano e não
humano, vinham se tornando cada vez menos claras. As
motivações artísticas que se encontram situadas no contexto da arte genética
fundamentalmente superam as fronteiras entre arte e natureza. Que significa alterar os processos naturais de
milhões de anos de evolução da vida? Como podemos assimilar e trazer ao nosso
mundo um coelho que brilha no escuro? Manipuladores genéticos contam com novos
dispositivos, órgãos podem ser produzidos de forma independente de um corpo. O uso
artístico da biotecnologia origina um importante debate em torno da tecnoética. Os especialistas se recusam a olhar mais além das
preocupações imediatas dos laboratórios de pesquisa. A exclusão do público
nestas discussões deixa um vazio que é preenchido pelas preocupações do
comércio, que se centra em ganhos em curto prazo. Podemos pensar em interfaces
“úmidas”, os wetwares, que incorporam
elementos biológicos que superam as limitações dos tradicionais hardwares. Os artistas que trabalham com
genética consideram o código genético de modo similar ao código digital; a
manipulação da vida é a manipulação do código.
As manipulações dos tecidos propõem as mais integrantes questões
epistemológicas, já que não há um discurso existente que tenha que ver com as
crescentes partes semivivas de um organismo independente, e complicam as noções do que entendemos por vida,
o eu e a identidade. Re-situar os processos e espaços da arte como práticas de
pesquisa propõe uma relação com a arte que não privilegia a percepção
visual ou julgamento estético, mas enfatiza a participação e transformação
intelectual e discursiva dos participantes.
O sujeito pós-humano é um amálgama, uma coleção de componentes heterogêneos,
uma entidade material-informacional cujas fronteiras passam por contínua
construção e reconstrução.
Eduardo Kac – Alba / Genesis (1999)
Tissue Culture and Art Project
Oron Catts
Ionat Zurr
Symbiotica – Semi-living Sculptures (2002) / Living and Semi-living
systems as food (2002)
Zach Blas – Facial Weaponization Suite: Militancy, Vulnerability,
Obfuscation, tableau vivant (2013)
Pinar Yoldas – Speculative Biologies Species of Excess (2012) /
p-plastoceptor (2014)
Micha Cárdenas
Hacketeria - http://hacketeria.org/
5. Sobre pragas, monstros e quimeras tecnológicas
Essa visão ecológica “profunda”, como menciona
Capra, deixa de ser antropocêntrica e percebe o meio ambiente como uma rede
onde o homem é simplesmente um elemento a mais. É reinterpretada em projetos
artísticos que relacionam educação e ativismo ecológico, o uso de energia
sustentável, comércio local de alimentos, uma “relação respeitosa com a
natureza”. Enquanto indústrias
biotecnológicas avançam com campanhas de que o mercado livre associado à
biotecnologias trabalha unicamente para o interesse público. Mas cuja fórmula é
“descubra um gene, faça uma pílula e venda”. O problema não é só de fundo
econômico, mas também epistemológico e ontológico.
Distinguir quando o ativismo político associado às biotecnologias se converte
em conservadorismo moral. A tecnociência não é um mero conhecimento neutro sobre
a realidade, mas um mecanismo de produção da realidade social e natural. A
produção de uma nova natureza. A biologia é um
olhar e um discurso sobre a vida, não o mundo vivo em si, e, portanto, os
organismos emergem também de um processo discursivo. A natureza não é um lugar
físico a que se possa ir, nem um tesouro que se possa fechar ou armazenar, nem
uma essência que salvar ou violar. A natureza não está oculta e, por tanto, não
precisa ser descoberta. A natureza não é um texto que se possa ler em códigos
matemáticos ou biomédicos. Não é o outro que brinda a origem, provisão e
serviços. Nem a mãe enfermeira nem escrava, a natureza não é matriz, nem um
recurso, nem uma ferramenta para a produção do homem.
Pragas, epidemias, montros e quimeras têm
representado historicamente o reverso da norma, aquele “outro” que deve ser
eliminado da Terra e ser enterrado no inferno do impossível. No entanto, hoje,
no território de uma vida crescentemente biotecnologizada, convivem conosco de
forma natural, produzindo uma nova natureza que não se exime de uma biopolítica
específica que regula e normativiza a vida, ainda que sempre escape pelos
entremeios do futuro, do acaso e da mais absoluta incerteza. Porque, assim como
Deleuze, sempre podemos dizer que “quando o poder toma a vida como
objeto ou objetivo, a resistência ao poder já invoca a vida e se volta contra o
poder. A vida se torna resistência ao
poder, quando o poder tem como objeto a vida”.
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